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Em defesa do amador

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O cinema amador é o cinema daquele que ama. E quem ama se sujeita a sentir a dor que existe em todo amor. O amador é aquele que pega com a mão, que transforma a ausência em matéria. A fragilidade é seu fundamento.  Para o amador, olhar é um convite para tocar, moldar, brincar. É quem faz com o que tem e tem o que faz. A arte não está no resultado mas no processo, nos seus erros e enganos. Rohmer, Cézanne, Salinger, Dylan, todos esses foram grandes amadores porque acima de tudo não deixaram nada entrar no caminho, a não ser o essencial. Ser amador é ser antropofágico: engolir tudo que nos fortalece. É voltar para a infância da arte, onde não há diferença entre a vida e os rabiscos que se faz no caderno. O amador é o único modo de se fazer política em cinema porque sua existência o é: política dos autores, dos atores, das minhas, das suas, das nossas dores. Não se faz cinema sem ser em primeiro lugar amador. Pois fazer cinema é implicar-se como se não existisse mais nada. Para o amador,

Filmar ou não filmar?

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Sem Ursos (2022), de Jafar Panahi A relação do cinema iraniano pós-revolução com o estatuto de verdade das imagens é, desde Kiarostami, fundacional. Não-atores e intérpretes amadores, dispositivos cênicos, a presença dos próprios cineastas em seus filmes e do foco sempre voltado ao retrato social – as razões pelas quais esse singular cinema de autor ganha proeminência, após os anos 1990, em um país do Oriente Médio que até então não estava presente nos cânones do meio, não pode ser encontrada senão em outro movimento, temporal e geograficamente distante: o Neorrealismo Italiano, onde a força da realidade pós-guerra era tamanha que se impunha sobre a ficção. Mas, diferente dos filmes de Rosselini e De Sica, em que a Libertação tornou favorável que as câmeras voltassem suas lentes para a realidade do momento, no Irã as forças culturais empurram para o caminho contrário. Se existe um elemento que, na obra de Kiarostami, Panahi e Makhmalbaf, perturba a ordem social, este é justamente a pr

Os Homens da Fábula

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Os Fabelmans (2022), de Steven Spielberg Por Luca Scupino No conto de J.D. Salinger Seymour: uma Introdução (1959), o narrador Buddy Glass procura, de alguma forma, prestar contas a seu irmão Seymour, um grande escritor que tirara a própria vida e cuja sombra paira sobre Buddy em tudo que ele faz e escreve. Ao longo do texto (que, como o próprio título diz, tem como intenção apenas introduzir uma noção sobre o irmão, algum lastro que lhe identifique em sua forma de existir), percebemos que, quanto mais Buddy parece dar conta de apreender o que é essa figura fugidia, mais próximo está de uma autobiografia, de falar sobre si próprio e seus fantasmas – de modo que o conto se transforma em uma grande interrogação, uma procura contínua que não encontra respostas a não ser sobre quem o escreve. The Fabelmans , novo filme de Steven Spielberg, parece trilhar por um caminho parecido: desta vez com a figura de Mitzi Fabelman (na vida, Leah Adler, mãe do cineasta), interpretada por Michelle Wil

Uma Noite na Cinemateca

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 Por Luca Scupino      Sábado passado, depois de muita espera (e enrolação), eu fui com alguns amigos à minha primeira sessão na Cinemateca Brasileira. Muita espera porque é mesmo um momento que não achei que fosse chegar, pelo menos tão breve. E para quem acompanhou toda a odisseia pela qual essa instituição tão importante, criada por Paulo Emílio Sales Gomes, passou durante os últimos governos (e torçamos para que acabem por aqui), é algo como um milagre vê-la aberta novamente para o público, com seus trabalhadores recontratados e cumprindo sua função social de preservação e exibição dos filmes. Para quem, como eu, que apenas recentemente passou a frequentar certos espaços culturais na cidade, é até estranho chegar na frente dos galpões na Vila Mariana e ver que aquilo existe para além de uma imagem no Facebook com um abaixo assinado atrelado, ou ilustrando um portal de notícias. A sensação de estar fisicamente lá, no entanto, mesmo não sendo frequentador de longa data, é de um pro

"The Last Days of Disco" (1998) e a consciência do tempo histórico

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Por Luca Scupino      Foram 13 anos de espera para que Whit Stillman realizasse seu próximo filme como diretor, após o fracasso de bilheteria de Os últimos embalos da disco (1998) . Com um orçamento de US$ 8 milhões e retorno doméstico de apenas 3 milhões, é mais um dado que constitui parte da mística deste filme: uma obra que parece estranhamente deslocada de seu tempo histórico de lançamento - obcecada por pequenos hábitos de um grupo social seleto em Nova York no início dos anos 1980, permeada por referências culturais que não pareciam fazer parte do universo indie cinematográfico dos anos 90 - mas que, ao mesmo tempo, se demonstra profundamente consciente do lugar que ocupa na produção contemporânea e adota um estilo idiossincrático que certamente não agradaria a boa parte de sua audiência, ainda menos com um título que facilmente remete às imagens nostálgicas de um John Travolta na pista de dança.      Se o contexto de recepção não o soube apreciar, não precisou-se esperar mui