Filmar ou não filmar?

Sem Ursos (2022), de Jafar Panahi

A relação do cinema iraniano pós-revolução com o estatuto de verdade das imagens é, desde Kiarostami, fundacional. Não-atores e intérpretes amadores, dispositivos cênicos, a presença dos próprios cineastas em seus filmes e do foco sempre voltado ao retrato social – as razões pelas quais esse singular cinema de autor ganha proeminência, após os anos 1990, em um país do Oriente Médio que até então não estava presente nos cânones do meio, não pode ser encontrada senão em outro movimento, temporal e geograficamente distante: o Neorrealismo Italiano, onde a força da realidade pós-guerra era tamanha que se impunha sobre a ficção. Mas, diferente dos filmes de Rosselini e De Sica, em que a Libertação tornou favorável que as câmeras voltassem suas lentes para a realidade do momento, no Irã as forças culturais empurram para o caminho contrário.

Se existe um elemento que, na obra de Kiarostami, Panahi e Makhmalbaf, perturba a ordem social, este é justamente a presença da câmera. Sabemos a força que uma imagem possui, especialmente em culturas que proíbem a representação religiosa por meio dos ícones. A fotografia adquire então, mais do que nunca, um papel de índice incontestável (ou de testemunha acusatória, em sua instância mais violenta), que deve ser vigiado, ponderado, em última instância censurado. Pois a câmera é uma arma, e há coisas que não são passíveis de representação.

Jafar Panahi, através da representação, vai em busca do irrepresentável, utiliza essa arma como uma estratégia de guerrilha. O cineasta, condenado à prisão domiciliar em 2010 e proibido de fazer filmes devido à propaganda contra o regime, desde então realizou uma série de longas-metragens, exibidos e premiados ao redor do mundo. Isto não é um filme, seu primeiro pós-condenação, em 2011, no qual ele é retratado pelo cineasta Mojtaba Mirtahmasb logo após o processo, foi transportado em um pen-drive dentro de um bolo para exibição de última hora no Festival de Cannes, onde rapidamente se tornou um marco.

Afinal, cinema sempre foi isso: contrabando. Tudo aqui nega seu estatuto como “filme”: do uso do iPhone do cineasta como câmera, à aparente recusa da ficção, e mesmo o título, que confirma a própria irrelevância: a vida se impõe, categoricamente, sobre a arte. E, na medida em que esse processo se torna demasiado forte para ser ignorado, é sobre isso que a arte deverá tratar. Ou melhor, é apenas sobre isso que ela poderá tratar.

Panahi é um contestador e, como todo grande contestador, o faz de bom humor. Em Sem Ursos, seu filme mais recente, ele questiona até os motivos pelos quais, em uma tradição de casamento em que os noivos devem lavar os pés no rio, as mulheres devem ficar à esquerda e os homens à direita. E toda sua carreira, na qual é central o retrato das mulheres no Islã e das crianças nascidas sob o novo regime, caminha na linha bamba entre a crítica às tradições e o amor às pessoas, ao mundo, a afirmação à arte de viver (“eu acredito que todas as pessoas são boas”). Panahi filma não por vaidade, mas antes por uma necessidade muito primária, por uma compreensão clara de que, se existe a possibilidade de filmar, haverá algo a ser mostrado, a ser desvelado, uma função para a câmera:

“Nada pode me impedir de fazer filmes, pois é quando sou empurrado para os cantos mais extremos que me conecto com meu eu interior e, nesse espaço privado, a despeito de todas as limitações, a necessidade de criar se torna algo além de uma vontade.”

Em Sem Ursos, o diretor interpreta a si mesmo, um cineasta proibido de filmar que encontra possibilidades inusitadas de burlar esse sistema, em uma forma de hackeamento digital. O momento inicial é composto por uma cena, nas ruas do Irã, em que um casal perseguido discute sobre fugir do país com passaportes falsos – até que alguém dá corta, vemos a claquete e, em um zoom out, tudo aquilo se revela o ponto de vista do computador de Panahi, no vilarejo rural próximo à fronteira em que ele então habitava, dirigindo sua equipe à distância.

Nesse vilarejo, acompanhamos o dia-a-dia de Panahi e como a presença de sua câmera altera o cotidiano da comunidade. Em particular, quando ele fotografa um jovem beijando uma moça que havia sido prometida, em seu nascimento, a outro homem – e quando os habitantes descobrem da existência dessa foto, insistem para que ele lhes entregue, gerando uma grande confusão. Depois, para jurar aos homens que a foto não fora tirada, ao invés de cumprir a tradição e dar sua palavra em nome do Alcorão, ele propõe de lhes entregar um vídeo, em que garante sua versão dos fatos (que, como não poderia deixar de ser, é nada mais que uma mentira em nome da verdade).

Não é a primeira vez, na obra de Panahi, que algum registro feito por dispositivos teria a capacidade de mudar significativamente a vida de alguém, alterar o que se dá a ver no regime estético de uma comunidade. Em Taxi Teerã (2015), filme em que Panahi assume o papel de taxista e grava conversas com seus passageiros (a que pouco importa em que medida são encenadas ou não), há um momento em que um motoqueiro, sangrando até a morte, pede desesperadamente um celular para filmar seu testamento, deixando seus bens para que a esposa não seja deserdada. Em outro instante posterior, a sobrinha de Panahi, garota que deve fazer um filme para a escola, filma uma cena de casamento em que um menino de rua rouba dinheiro que o noivo deixou cair no chão. A menina implora, então, para que esse devolva o dinheiro e que não estrague seu filme, garantindo um final feliz, em que a virtude prevalece.

Se a câmera é, por um lado, um instrumento que revela a realidade, Panahi também está interessado em como a mesma imagem também pode ser um mecanismo potente de mentira, de falsificação. É nessa medida que, quanto mais próximos seus filmes chegam do limite da representação, mais evidente fica que o cinema sozinho é insuficiente para alterar a realidade e que deve, em uma forma de mise en abyme, apontar reiteradamente para o extracampo e o extrafilme, ao modo de uma câmara de eco que tende para expansão além de seus limites circunscritos.

Nesses momentos, o primeiro a romper a lógica da representação, enquanto índice de transparência do aparelho cinematográfico, é o ator. Em Sem Ursos, tal como acontecera no filme de Panahi O Espelho, de 1997, há um momento em que a atriz do filme dentro do filme se recusa a prosseguir com a representação, quando percebe que o passaporte que fora prometido ao seu marido tratava-se de um prop, objeto cênico, e que a ficção ali presente servira para aliená-la, convencê-la de uma possibilidade de mudança que não ocorreria fora da narrativa. Ela arranca sua peruca, olha para a câmera, quando protesta e se recusa a continuar filmando. E o único momento em que Panahi de fato parará é quando, dias depois, após o desaparecimento da mulher, seu corpo é encontrado no mar e o marido reage em desespero. Mesmo se tratando de uma situação cênica, o Panahi dentro do filme manda cortar, pois sabe que a única maneira de representar o irrepresentável é através do silêncio. Como afirma Susan Sontag, a fotografia é um ato de não-intervenção: por trás de toda imagem de uma tragédia, há alguém que preferiu fotografar à intervir naquela realidade.

Logo após o lançamento de Sem Ursos, em 2022, Panahi foi novamente encarcerado, de onde saiu apenas em 2023, quando ameaçou uma greve de fome e, diante da pressão internacional, o governo do Irã decidiu por liberá-lo. Em dado momento do filme, ele é levado até a fronteira do país, onde se depara com um dilema: cruzar ou não cruzar, eis a questão. Antes, lhe é contada uma história: se caminhar sozinho à noite, ele deve tomar cuidado com ursos que podem ataca-lo. É curioso que os ursos não sejam vistos, da mesma forma que não vemos a milicia que opera na fronteira e só damos conta de que ela existe, de fato, quando aquele casal apaixonado do início tenta cruzar a linha e acabam baleados, no momento final em que Panahi se prepara para ir embora do vilarejo.

Embora os ursos não sejam vistos, e quiçá nem existam, seus rastros não deixam de paralisar a quem os percebe. Mas fugir ou não fugir? Eis a questão. Enfrentar e ser calado, ou ir embora e se calar? Após, em sua partida, se deparar com os corpos mortos dos jovens amantes, Panahi para o carro, deixando-se preencher por um sentimento de fúria, e o filme termina. A realidade se impõe sobre a ficção (novamente), e no momento que o filme o conduz a uma ação final, climática, tudo que o cineasta nos reserva é uma tela preta. É assim que o extrafilme se torna uma continuação da jornada que o levou até ali: é hora para agir, para se apropriar da mentira e conduzi-la à verdade. Afinal de contas, é preciso entender o momento em que isto não é mais um filme.

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