Os Homens da Fábula


Os Fabelmans (2022), de Steven Spielberg

Por Luca Scupino

No conto de J.D. Salinger Seymour: uma Introdução (1959), o narrador Buddy Glass procura, de alguma forma, prestar contas a seu irmão Seymour, um grande escritor que tirara a própria vida e cuja sombra paira sobre Buddy em tudo que ele faz e escreve. Ao longo do texto (que, como o próprio título diz, tem como intenção apenas introduzir uma noção sobre o irmão, algum lastro que lhe identifique em sua forma de existir), percebemos que, quanto mais Buddy parece dar conta de apreender o que é essa figura fugidia, mais próximo está de uma autobiografia, de falar sobre si próprio e seus fantasmas – de modo que o conto se transforma em uma grande interrogação, uma procura contínua que não encontra respostas a não ser sobre quem o escreve.

The Fabelmans, novo filme de Steven Spielberg, parece trilhar por um caminho parecido: desta vez com a figura de Mitzi Fabelman (na vida, Leah Adler, mãe do cineasta), interpretada por Michelle Williams. Como ele mesmo indica, na introdução que é exibida nas sessões de cinema, este é o filme mais pessoal já feito pelo cineasta, famoso por contar histórias fantásticas sobre extraterrestres, dinossauros, caçadores de tesouros e nazistas que salvam pessoas dos campos de concentração.

A obra, na tentativa de construir essa identidade da mãe – uma pianista que, com o pai, cientista interpretado por Paul Dano, forma a personalidade dupla de Spielberg como engenheiro e artista – é também uma trama de amadurecimento sobre a formação de Spielberg como cineasta, em meio a uma família incomum em que o amor escoa de maneira que nem sempre pode ser compreendido.

Na cena inicial, pequeno Spielberg assiste ao seu primeiro filme no cinema, The Greatest Show on Earth (1952, de Cecil B. de Mille). Fascinado por uma cena com um acidente de trem, ele tenta reproduzi-la obsessivamente com o trenzinho que ganhou de presente de Hannukah, destruindo o brinquedo, o que não agrada ao pai. A mãe dá a ideia, então, de que filmar o acidente com uma câmera Super 8 pode ser a saída para que o menino assista e reassista a cena até que ela não se torne tão assustadora: “por isso que ele precisa vê-los bater. Ele precisa ter algum controle sobre os trens”.

É dessa maneira que o novo trabalho de Spielberg é um filme sobre uma obsessão, uma neurose que é sempre pautada pela ótica cinematográfica. Do mesmo modo que o pequeno Spielberg tem a necessidade de filmar o acidente de trem para que este trauma seja enfrentado e compreendido (e não há dúvidas de que a imagem do trem é o trauma original do cinema, como já escrevi aqui), o grande Spielberg, este após percorrer todos os mundos que desejava por meio do cinema, faz deste um filme inteiro para enfrentar outros traumas que lhe afetaram de maneira profunda (em particular o divórcio dos pais e o antissemitismo na América).

Não à toa, é a partir do próprio cinema, da montagem de suas imagens caseiras, que Spielberg descobre o amor da mãe pelo melhor amigo do pai, Tio Benny, figura querida na família, revelação que altera seu modo de compreender a realidade e o condena a enxergar o cinema como esse meio com o qual ele é obrigado a ver as coisas – ideia reforçada pela presença do tio-avô, um velho artista circense que sabe sobre como a arte pode ser um grande fantasma que não cessa de pairar sobre o criador, invadindo seu modo de viver.

Nesse sentido, não podemos afirmar que The Fabelmans se trata de uma autoficção, uma projeção de seu criador que permite o exercício próprio de fabulação a partir de um duplo. Pelo contrário, pela primeira vez Spielberg não está interessado no cinema como um exercício de criação, mas sim como um de recriação, de reconstituição obsessiva da realidade. Só assistir ao vídeo do cineasta falando sobre seu encontro real com John Ford e analisar como isso foi filmado aos mínimos detalhes no final do filme, com direito, inclusive, à participação de um grande cineasta contemporâneo para interpretar aquele que é talvez o maior dos cineastas.

Um professor meu na faculdade dizia que uma das maiores habilidades de Spielberg, no seu lado cineasta-cientista, seria de saber calcular exatamente quantos mililitros de lágrimas um espectador derrubaria ao ver uma cena de seu filme. Pois bem, se isso se mostrou irrefutável ao longo de quase 50 anos, sinto que, em The Fabelmans, Spielberg arrisca perder seu controle, ao apaixonar-se excessivamente pelos detalhes para deixar de construir uma criação mais livre. Isso é presente não apenas no tom desastrado de algumas cenas como a discussão no corredor com o valentão de sua escola, como também na própria representação da figura de sua mãe e do homem pelo qual ela é apaixonada, Tio Benny, interpretado por Seth Rogan, cujo papel se reduz a esse de um Rei Cláudio que nunca para de contar piadas. A explicação é simples: não se trata da enunciação de um roteirista ou de um cineasta qualquer, mas sim de alguém que viveu essa história e não pode abdicar de seu ponto de vista para contá-la.

O modo como Spielberg filma Michelle Williams é dúbio, para dizer o mínimo. Essa figura materna que representa o centro emocional do filme, para quem ele o dedica, se encontra entre uma admiração, uma entrega total, e um descontrole que chega a ser histriônico pela atuação de Williams. Em muitas de suas cenas mais dramáticas, ela está vestindo um figurino colorido com pantufas e um cabelo que parece saído de uma sitcom dos anos 60, enquanto a atriz faz caras e bocas que se afastam do registro naturalista até então preservado. Mas na medida em que o filme trata dessa eterna procura pela reconstituição de uma mãe, pela tentativa (ainda mais difícil na adolescência) de compreender suas complexidades e a maturidade infantil de seu amor, são elementos que agregam à tentativa escopofílica de reviver momentos da realidade por meio do filme, para então compreender esta relação edípica ao mesmo tempo tão particular e universal.

Para Bazin (pois sempre voltamos a ele), em seu texto Evolução da linguagem cinematográfica, existem dois tipos de cineastas: aqueles que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade. Spielberg, ao longo de sua carreira, sempre foi um dos que acreditavam na imagem, não à toa a citação que o define diz que tudo que pode ser imaginado, também pode ser filmado. Nesse caso, porém, me arrisco a dizer que o cineasta segue o caminho oposto (como seu alter-ego diz no filme: “all I did was hold the câmera and it saw what it saw”). Ao trilhar pelo caminho do insconsciente, da apreciação pelos detalhes e a reconstituição pelo olhar não domesticado, ele se arrisca a perder um pouco do controle de cientista que sempre exerceu sobre seus filmes. Mas é na mesma potência que o filme consegue, mesmo sem ser uma autoficção, se converter em um olhar ainda mais pessoal de seu autor. O toque final pela câmera, ao mover-se e enquadrar o horizonte nas extremidades tal como na dica de Ford, é a tentativa dialética de ter algum controle sobre esse olhar, de transformá-lo em mise en scène, e que chega apenas ao final do filme, em um gesto mostrando a ambiguidade desse velho cineasta preso entre a capacidade técnica de apreensão do aparelho cinematográfico e a potência fabulativa que ele pode vir a possuir.

Como afirma o personagem de Paul Dano no filme, “we’ve gone too far in our story to actually say the end”. Acredito que o filme seja essa tentativa em movimento de, acima de tudo, capturar um sentimento ao qual o próprio diretor reconhece apenas tatear. E nesse sentido, este texto é também apenas uma tentativa de explorar um filme que parece às vezes fugir da compreensão que esperamos de uma obra spielbergiana. Para um grande contador de histórias como Spielberg, não deixa de ser interessante vê-lo retornar à imaginação em meio às suas lembranças e encontrar fábulas a partir da reconciliação com a realidade.

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