Uma Noite na Cinemateca

 Por Luca Scupino

    Sábado passado, depois de muita espera (e enrolação), eu fui com alguns amigos à minha primeira sessão na Cinemateca Brasileira. Muita espera porque é mesmo um momento que não achei que fosse chegar, pelo menos tão breve. E para quem acompanhou toda a odisseia pela qual essa instituição tão importante, criada por Paulo Emílio Sales Gomes, passou durante os últimos governos (e torçamos para que acabem por aqui), é algo como um milagre vê-la aberta novamente para o público, com seus trabalhadores recontratados e cumprindo sua função social de preservação e exibição dos filmes.

Para quem, como eu, que apenas recentemente passou a frequentar certos espaços culturais na cidade, é até estranho chegar na frente dos galpões na Vila Mariana e ver que aquilo existe para além de uma imagem no Facebook com um abaixo assinado atrelado, ou ilustrando um portal de notícias. A sensação de estar fisicamente lá, no entanto, mesmo não sendo frequentador de longa data, é de um profundo acolhimento. Pelos pôsteres espalhados, os tijolos laranjas onipresentes e espaços abertos entre os edifícios, do café na primeira porta à esquerda ao telão nos fundos: tudo parecia calmo, como se nada que ouvíssemos nos últimos dois (ou mais) anos tivesse acontecido. A Cinemateca está de volta ao normal (quer dizer, pelo menos como eu imagino que o seja!).

Minha primeira sessão foi do filme Matar ou Correr (1955), de Carlos Manga, com Oscarito e Grande Otelo, produzido pela Atlântida. Uma cópia em 35mm, restaurada, exibida ao ar livre, como parte da retrospectiva dos dois comediantes. Desde a reabertura, outras exibições foram realizadas, de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (na cópia 4K recém-lançada em Cannes) a Harakiri, mas por alguma razão me pareceu certo ser apresentado a esse ambiente um tanto sagrado com o deboche característico da Atlântica.

Muito já foi escrito, como no brilhante texto de Victor Guimarães para o Cinelimite, sobre como a degradação material do filme tornou-se parte integrante para a análise crítica das ditas “chanchadas”, como as interpéries do tempo não podem ser separadas da posição de marginalidade que essas obras ocupam em um nível nacional e global; no entanto, vê-las restauradas é algo que se assemelha a um sonho, uma máquina que nos transporta no tempo para a era de ouro da experiência cinematográfica de estúdio brasileira, onde podemos até (olha só!) compreender o que esta sendo dito pela qualidade do som - o que certamente completa a experiência um tanto irreal de está-las presenciando na Cinemateca.

Paródia de Matar ou Morrer (High Noon, 1952), de Fred Zinnemann, o filme de Carlos Manga mantém similaridades que vão para além do título e que reforçam a sagaz percepção de adaptação que as chanchadas tinham, levando em conta as características próprias de um cinema terceiro-mundista. Como o próprio Paulo Emílio diria, “(...) a adoção, pela plebe, do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante”, de modo que foram talvez os primeiros a usarem essas limitações estruturais como fundamento estético. E como usaram! Afinal, nenhum outro país do mundo poderia ser berço destes filmes, e ao mesmo tempo o que se faz aqui é uma paródia à brasileira daquele gênero que, como diria Bazin, é o cinema americano por excelência: o western.

No faroeste de Zinnemann, Gary Cooper interpreta um xerife envelhecido, que no dia de seu casamento (com Grace Kelly), sente-se compelido a enfrentar um velho inimigo que chegará à cidade no trem do meio-dia. Uma velha narrativa de herói aposentado, que é obrigado a reenfrentar os fantasmas de seu passado (mas como diria um velho mestre, melhor partir do clichê do que terminar em um). No entanto, com uma limitação fundamental: o tempo. Este pesa ao longo de todo o filme, sentidos, em primeiro lugar, nas rugas que desenham o rosto de nosso protagonista. É este mesmo tempo que pesa no seu presente, com as memórias de um amor perdido e de valores que hoje não significam nada, pois ninguém ajuda o herói em seu enfrentamento solitário, à exceção, veremos, da nova esposa que cogitou deixa-lo. O filme é permeado por relógios, por tics e pulsações, por uma lembrança constante de que o vilão está chegando, reforçado pela narrativa em tempo real, sem elipses temporais. E nem precisamos ver a face deste vilão para sabermos que se aproxima. Aliás, seu rosto é sequer uma memória que tenho em minha cabeça, mesmo o tendo visto na semana em que escrevo.

Enquanto isso, o filme de Manga é passado “em certo ponto do oeste, e em época qualquer” (não mais o tempo e espaço rigorosamente definidos do faroeste americano, mas o oposto disso), e a língua falada é a “‘portuguesa com certeza’, conservando porém o termo local ‘waltzeng’, que significa ‘tudo bem, tudo legal, tudo azul’”. Nele, temos como protagonista não um herói, mas dois malandros, interpretados obviamente por Oscarito e Grande Otelo. Kid Bolha, com o olhar de palhaço medroso de Oscarito, e Ciscocada, com a esperteza característica de Otelo, chegam na cidade por acaso, onde o primeiro (também por acaso) se encontra com o bandoleiro Jesse Godon, interpretado pela presença marcante de José Lewgoy, e após prendê-lo por acidente, é promovido a xerife.

Se no filme de Zinneman a aproximação do antogonista é marcada pela presença do relógio, e sua antecipação é prevista por Cooper, que procura reunir outros membros da cidade para enfrenta-lo no duelo a armas, no de Manga temos Oscarito esperando pela chegada de José Lewgoy aos prantos, sendo reconfortado por duas mulheres, e procurando voltar o ponteiro do relógio quando este marca meio-dia. O jeito de Otelo e Oscarito para a comédia física também rende momentos como o final, em que a cidade arquetípica americana City Down é literalmente colocada para baixo após pulos de Grande Otelo contra os capangas gerarem uma reação em cadeia, em que todos os cidadãos se envolvem em uma briga de bar, cujo resultado é a quebra de mesas, queda de andares e luta com garrafas. O puro suco do caos, uma luta tão desengonçada e emocionada que só poderia ter como resultado a vitória do lado dos cidadãos.

Diz-se muito sobre como a Atlântida Companhia Cinematográfica foi a materialização possível de uma indústria cinematográfica periférica, pelo tanto que conseguiu durar (o que está corretíssimo), mas o que se deixa escapar é como a definição “chanchada” talvez não faça juz a uma análise qualitativa do que se produzia então. Derivado do italiano “cianciata”, termo pejorativo que significa algo feito às pressas e de qualquer forma, isto está longe de representar tudo aquilo que Manga atinge nesse e em suas outras obras. Inegavelmente o grande cineasta da Atlântida, mesmo sem os close-ups e as gruas de Zinnerman, Manga dispõe genialmente da montagem paralela (o final é um exemplo evidente da maestria de seu trabalho, intercalando diferentes narrativas), com o trabalho que vai de diferentes gêneros, da comédia à ação, romance e musical, e com planos que aproveitam o trabalho corporal dos dois protagonistas - tal qual comediantes do cinema mudo, sempre em embate com o mundo a seu redor. Ele se converte, desta maneira, no cineasta ideal para dar a olhar essas duas figuras tão emblemáticas do cinema brasileiro.

Um momento genial de montagem por associação em Matar ou Correr

Oscarito e Grande Otelo são, como falei para meus amigos no fim da sessão, revolucionários. Em todo sentido da palavra. Não apenas pela presença física (a questão racial que certamente daria um artigo à parte: a negritude de Grande Otelo, com os arquétipos que soube trabalhar de maneira tão ambígua, em par com a palidez esquálida de Oscarito, a qual certamente contrasta com o que seria um protagonista branco convencional, do cinema americano, digamos), mas também pelo que representam como personagens totalmente à margem daquela sociedade.

Logo no começo, sabemos que os dois foram condenados à morte por forca, de onde escapam por um triz (ou seja, nossos heróis, na realidade, já começam o filme como bandidos e vigaristas). O que se segue, após uma série de confusões, que colocam à tona a quase nenhuma preocupação que esses personagens têm com qualquer tipo de moralidade – desde quando bebem o uísque que deveria ser dado a um jovem ferido para anestesiá-lo, da vontade de Oscarito de fugir antes que o vilão chegue, a Grande Otelo dando um gato cujos donos são habitantes da cidade para servir de alimento ao detento na delegacia. Por fim, o último plano mostra os dois palhaços (que curiosamente não possuem interesses amorosos ao longo do filme) se beijando por acidente, e dando uma forte risada, quando se dão conta. Esse beijo, que pareceria impensável para filmes do Cinema Novo nos anos 1960, inclusive, era tratado com tanta naturalidade que não se pode deixar de pensar sobre como a Atlântida soube trabalhar na margem da cultura estabelecida, a implodindo sem qualquer preocupação caso fosse necessário.

Como mais um exemplo disso, o filme foi lançado em 1954, ano da morte de Getúlio Vargas e da grande comoção nacional por ela gerada. O presidente da época era motivo de piadas constantes em diversos filmes anteriores da Atlântida, muito embora as intenções dessas obras nunca fossem diretamente políticas. No entanto, com a morte do presidente, haveria um consenso de que o cinema agora deveria distrair as massas do clima político fúnebre do país, o que não impediu que, no momento em que Oscarito fosse consagrado como xerife, a seguinte frase fosse proferida: “Senhores, de hoje em diante, deixará esse lugar comum para entrar na história com o nome de Kid Bolha” – aludindo, possivelmente, à carta de suicídio de Vargas. Coincidência ou não, pensar nesse paralelo apenas deixa a obra de Manga mais interessante.

Poucos dias depois de minha visita à Cinemateca Brasileira, termino a leitura de O Último Deus, livro inclassificável de Rodrigo Petronio, lançado em 2022 pela editora Rua do Sabão. Professor meu durante a faculdade e certamente um dos pensadores mais brilhantes que já conheci, essa é uma coletânea de 30 contos escrita ao longo de mais de 20 anos de carreira, que exploram mundos conhecidos e desconhecidos, a confluência das marcas deixadas pelo antropoceno frente à vastidão intocada do universo, da história humana e as narrativas criadas e não criadas. Isso pode parecer totalmente abstrato e não ter relação com o tema do artigo, mas um conto, intitulado justamente “Atlântida”, explora o mito da cidade perdida através de um viajante que ali estabelece um diálogo com seu rei:

“-E tudo isso vai ruir um dia?, interpela o viajante.

-Não, responde o rei. Porque nada disso de fato existe. Somos a condição de possibilidade para que outros reinos e cidades possam vir a ser o que são. Eles sorvem em nós as suas formas, inspiram em nosso movimento o seu movimento. Somos a cidade que produz em si todas as cidades. Como o pássaro Sïmurg produz, a partir de sua sombra, todos os pássaros da Terra, a sombra de nosso reino produz todos os reinos. Atlântida não é uma cidade perdida. Essa é uma lenda produzida para desviar a humanidade de nosso verdadeiro sentido. Também não é uma cidade. É a ideia que confere realidade a todas as cidades. Tampouco é um mundo. É a condição prévia para que todos os mundos existam e possam continuar a existir, ao longo dos infinitos tempos e espaços que coabitam a eternidade.”

            No final do conto, ambos chegam à conclusão inevitável de que originalidade é a maior das mentiras criadas pela mente humana e por ela reforçada. Não sei exatamente por quê, mas me pareceu muito certo relacionar esse conto com minha experiência aqui descrita, talvez até mesmo porque o gênio de um filme como o de Manga nasce justamente através desse movimento de se inspirar no estrangeiro para então traí-lo, ou o contrário, e assim sucessivamente. E nos resta esperar que a Cinemateca, Grande Otelo e Oscarito sejam as condições de possibilidade para que possamos pensar em novos passados e investigar possíveis futuros para o nosso cinema, lutar para que os ventos vindos da Atlântida continuem a nos dar vida.



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