"The Last Days of Disco" (1998) e a consciência do tempo histórico

Por Luca Scupino

    Foram 13 anos de espera para que Whit Stillman realizasse seu próximo filme como diretor, após o fracasso de bilheteria de Os últimos embalos da disco (1998). Com um orçamento de US$ 8 milhões e retorno doméstico de apenas 3 milhões, é mais um dado que constitui parte da mística deste filme: uma obra que parece estranhamente deslocada de seu tempo histórico de lançamento - obcecada por pequenos hábitos de um grupo social seleto em Nova York no início dos anos 1980, permeada por referências culturais que não pareciam fazer parte do universo indie cinematográfico dos anos 90 - mas que, ao mesmo tempo, se demonstra profundamente consciente do lugar que ocupa na produção contemporânea e adota um estilo idiossincrático que certamente não agradaria a boa parte de sua audiência, ainda menos com um título que facilmente remete às imagens nostálgicas de um John Travolta na pista de dança.

    Se o contexto de recepção não o soube apreciar, não precisou-se esperar muito tempo para que víssemos a reavaliação crítica dos filmes de Stillman. Relançamentos comemorativos na América do Norte, em locais como Lincoln Center, The Royal e MoMA, assim como sua inclusão no catálogo da Criterion Collection e a impulsão que o diretor tomou através da cinefilia jovem na internet, garantiram a restauração de seus filmes e a justa colocação do cineasta como um dos mais originais da cena independente americana, à qual o próprio já parecia ter a consciência de haver chegado atrasado.

    Stillman já afirmou em entrevista que pensa em todos os seus filmes, em primeiro lugar, a partir de um espaço e um tempo que lhe pareçam interessantes. Os últimos embalos da disco (1998) é seu terceiro longa e também o último de uma trilogia temática, completada por Metropolitan (1990) e Barcelona (1994), e apelidada pelo próprio como “doomed-bourgeois-in-love-series”. Todos os personagens de seus filmes compõem o grupo que um deles, de Metropolitan, denomina como o acrônimo UHB (segundo ele, “urban haute bourgeoisie”, um termo inventado para fugir de alcunhas depreciativas como “preppy” ou “WASP”, as quais não representariam a classe alta nova iorquina à qual pertencem todos na festa em que se encontra), e todos da trilogia apresentam seu ator-fetiche Chris Eigemann, correspondente perfeito da sensibilidade cômica de Stillman.

    A filmografia é permeada por anedotas observacionais sobre os tipos sociais de NYC, as nuances de seus gestos e maneirismos e os rituais que frequentam, sobre recém-graduados em Harvard e Hampshire, yuppies (young urban professional) do mercado editorial e publicitário, jovens executivos que mal conseguem enxergar para além da bolha social que frequentam, mas que possuem em comum a apreciação adolescente de certos produtos culturais, como crítica literária de trabalhos menos conhecidos de Jane Austen, música disco do final dos anos 70, lições empresariais de Dale Carnegie, contos de J.D. Sallinger e animações da Disney dos anos 1950. E há um certo paradoxo representado por personagens que, ao mesmo tempo, mesclam a eloquência do círculo social que pertenceria a um filme de Woody Allen, uma consciência erudita acerca do universo ao qual pertencem, ao passo em que também não parecem ter noção alguma daquilo que representam frente a) aos seus pares e b) ao espectador.

    The last days of disco é, em certo sentido, o filme mais gracioso do diretor. Tanto no sentido em que Stillman parece encontrar um meio termo entre a arrogância autoconsciente de seus personagens e a fascinação que ele, roteirista, tem por aquele mundo; quanto por ser um filme absolutamente virtuoso em como o captura, em todos os seus pequenos detalhes. É comum que se considere suas obras como “filmes de roteiro”, em que importaria mais o que é dito do que o exercício audiovisual proposto (e, de fato, em todos os diálogos, parecemos ouvir mais a voz do roteirista colocada na boca dos atores do que necessariamente o pensamento dos personagens “UHB”, de onde certamente emerge a grande ironia de sua poética). No entanto, o filme de 1998 constitui o equilíbrio perfeito entre a ironia e a graça, a crônica de um observador onisciente e o fluxo de alguém que só poderia ter participado daquilo para retratar o ar de uma cena, a cor e a luz do mundo do Disco, com tamanha preciosidade.

    Last days, em especial, toma como ponto de partida Alice (interpretada por Chloe Sevigny, o grande rosto do cinema independente americano, também de Larry Clark e Vincent Gallo) e Charlotte (Kate Beckinsale, outra atriz em ascensão), duas jovens assistentes no mercado editorial que frequentam uma discoteca “in the very early 80s”. Isso apenas para introduzir as idas e vindas entre elas e seus interesses amorosos, a relação tóxica que Charlotte tem com Alice, o mundo editorial do qual fazem parte, os homens do grupo que frequentam e, por fim, a própria boate em seu auge, que sempre media as relações e conflitos por meio da dança, e retorna múltiplas vezes ao longo do filme de maneira que se estende às relações de todos os personagens, dentro e fora do clube.

    A câmera de Stillman parece sempre interessada em encontrar o meio termo entre a elegância (a sedução, a política dos corpos dentro do clube) e o pitoresco. Como num romance de Austen ou de Fitzgerald, ela é atraída pelo que há de mais curioso acontecendo no clube, seja no balanço entre as narrativas paralelas de múltiplos personagens – que se movimentam, entram e saem de quadro constantemente – ou até mesmo por mostrar os figurantes mais interessantes do clube: uma mulher com roupa de tigre, outra que dança nua, um grupo fantasiado dos personagens de O Mágico de Oz, ou mesmo atores de outros filmes da trilogia de Stillman, que aqui reaparecem interpretando os mesmos personagens, como Audrey Rouget (de Metropolitan) ou Ted Boyton (de Barcelona).

    Aspecto, aliás, que nos leva novamente à ironia de Stillman, à sensação de que ele nos apresenta aqui um universo de sua própria criação, reiterado pelos créditos em que os personagens coadjuvantes são creditados pela ordem do filme em que surgiram (“from Metropolitan”, “from Barcelona”). Essa manobra, no entanto, não toma dimensões cínicas, pois assim como Stillman deixa a cargo dos espectadores julgarem ou não os personagens em virtude de seus comportamentos egoístas, a aparição dessa dimensão metatextual nunca aponta para a falsidade do material ficcional, mas antes para as próprias regras de seu universo, permeado pelo uso da referência e da citação.

    Serge Daney, em seu texto “Pedagogia Godardiana”, aponta para como o cinema de Godard pós-1968 constitui-se a partir de uma lógica de discursos que assemelha-se à da escola: “Ora, há uma condição sine qua non para a pedagogia Godardiana: nunca questionar o discurso do outro, não importa qual seja. Tomar, tolamente, esse discurso ao pé da letra. Tomá-lo também (o próprio Godard) ao pé da letra. Discutir, ele, Godard, apenas o que já-foi-dito-pelos-outros, o já-dito-já-construído em enunciados. Indiferentemente: citações, slogans, cartazes, piadas, histórias engraçadas, lições, manchetes de jornais etc. Enunciados-objetos, pequenos monumentos, arquivos de significação, palavras tomadas como coisas: a (a)pre(e)nder ou largar.”

    Stillman, de uma certa maneira, e por mais diferente que seja de Godard em seu ponto ponto de partida e de chegada, assemelha-se a ele na maneira com que trabalha esses discursos: “What I like and find liberating in dialogue comedy is that the characters, and what they say, are not me. These are fleeting thoughts and observations and not presented as truths but as something that illuminates the character and the dynamic between the characters. This kind of dialogue is thesis and antithesis —and we never get to a synthesis”.

    O americano encontra, assim, uma dialética interessante: ao passo em que não necessariamente concorda com o que seus personagens dizem e fazem, eles também o dizem e o fazem justamente porque foram assim concebidos por Stillman no roteiro. E é deste modo que se assemelham a marionetes que tomaram vida, que permanecem controladas por seu mestre, mas conscientes do mundo material a seu redor. Frases como “anything I did that was wrong, I apologise for. But anything I did that was not wrong, I don’t apologise for” e “I consider you a person of some integrity, except, you know, in your relationtionships with women” apenas iluminam o senso de humor mordaz do universo de Stillman.

    Vamos para outro elemento revelador. Uns meses atrás estava vendo algum vídeo no Youtube relacionado a esse filme, onde um comentário anônimo escrevia que o adorava, mas acreditava que o único defeito da obra era o fato de que, embora o filme se passasse no começo dos anos 1980, todos os personagens se vestiam como se estivessem no final dos anos 1990, e toda a cenografia parecia também deste momento. 

    E vou além, não apenas a jaqueta jeans de Kate Beckinsale e o vestido com lantejoulas coloridas de Chloe Sevigny gritam “anos 90”, como também a forma de falar é de um 1998 que se encontra entre o fim de Seinfeld ao começo de Sex and the City (e toda a influência televisiva à qual a personagem de Kate diz querer trabalhar com), assim como as referências culturais (de Bambi ter criado uma geração de ecologistas a “there’s something very sexy about Scrooge Mcduck”; da crítica à geração de Woodstock, que não dançava, ao monólogo final do personagem Josh sobre como a Disco nunca irá morrer) parecem todas ser olhadas do presente para o passado, escritas por alguém em um tempo histórico subsequente, que parece ter uma visão absoluta de tudo que irá acontecer posteriormente, tudo que irá mudar ou se tornar brega.    









    Os personagens, dessa maneira, tal como no monólogo acima, reforçam através do discurso a ironia cósmica de seu autor, demonstram ao mesmo tempo uma consciência plena da era da qual fazem parte, e uma consciência nula do papel que interpretam no jogo de marionetes de Stillman. Do protagonista de uma classe social abaixo em Metropolitan ser visto como esnobe por não andar de táxi, ao funcionário da marinha de Barcelona que procura corrigir uma pichação anti-americana com canetinha, ao publicitário de Last Days que não se considera um desempregado, apenas diz ser “um empregado sem emprego no momento” e à passivo-agressividade da personagem Charlotte com Alice, em todas as oportunidades que encontra – nesse cosmos a autoconsciência passa apenas pelo nível da ficção, pois ao espectador torna-se mais do que visível a ironia e a superficialidade que media as relações entre personagens. Como dizem em uma conversa os dois protagonistas de Barcelona:





    Por que, afinal, fazer um filme sobre a Disco em pleno final dos anos 90, quando ela, mais do que nunca, pareceria fora de moda? A resposta parece estar na cena final. Alice, agora com Tom (pois a rotatividade de casais também faz parte da dança), pegam um metrô, logo após ser anunciado que o Disco acabou, com o fechamento do clube e a queda das vendas, onde seus corpos seguem uma dança ao som de Love Train, de The O’Jays, música que só eles parecem ouvir. Dá-se um fade na imagem, que retorna no mesmo metrô, onde a dança contagiou a todos, enquanto os créditos rolam. Como um elemento extra-diegético que é levado à diegese do filme, uma ironia do espectador que é absorvida como algo sagrado pelo personagem (novamente a diferenciação entre nossa percepção e aquela das criações do diretor). A grande sacada de Stillman foi nos fazer acreditar que, falando sobre o universo desses personagens, ele estaria falando sobre sua própria realidade – quando, na verdade, ele estava reescrevendo a História da maneira como deveria ter sido, imbricando-a no tecido da ficção. O Disco havia apenas começado.


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