Lumière, Benning, Tscherkassky: trens, trens, trens
por Luca Scupino
1.
No princípio era a luz. Louis
Lumière = duas vezes luz, como diria o cineasta Jairo Ferreira. Se essa luz era
tanto a matéria-prima quanto o resultado material das imagens que ali tomavam
proporção, o que era por ela iluminado e enquadrado também pertencia a um
universo específico de signos: festas, tradições, acontecimentos públicos,
esquetes cômicas, máquinas, imagens do novo mundo em movimento. Mas de todas
estas, uma imagem permanece a mais marcante, a mais afetiva: o espectro do
trem. E nada faria mais sentido que começar esse espaço com uma anunciação,
uma chegada.
A relação entre trens e cinema não é
nova (talvez, aliás, seja a mais antiga de todas), tampouco é a teoria de que o
cinema corresponde no campo estético à mesma necessidade de compressão
espaço-temporal que o surgimento do trem promove no transporte, fundando uma
nova experiência urbana, que tanto foi base para a poesia e as artes plásticas no
século XIX. Não interessa, portanto, analisar o contexto histórico que
possibilitou as similaridades entre os dois meios – afinal, é isso que são,
duas mídias, dois transmissores de informação – como meros correlatos da vida
na modernidade, pois isso já está na base, na ontologia e na fisiologia desses meios.
A sequência de fotogramas e os vagões em série; as perfurações da película e as
rodas e trilhos; a faixa contínua, o movimento enquanto se está parado e
estaticidade quando se está em movimento, a janela pela qual observamos uma
realidade: se formos realizar uma arqueologia das mídias, como propõe
Elsaesser, veremos que o cinema deve sua origem tanto às ferrovias quanto à
fotografia, ao teatro e à pintura, e que isto está codificado na própria
engrenagem na qual ele nasce.
Mas, se escreve Elsaesser, partindo
de Tom Gunning, que além de uma “estética do assombro”, devemos buscar uma
“hermenêutica do assombro”, não há imagem mais assombrosa no cinema que a do
trem, em todos os sentidos. Assombro, no dicionário: “grande espanto ou
admiração” – o espanto, tal como diz Ferreira Gullar, que permite a criação ao
nos mover, nos tirar de um lugar comum e fazer perceber as nuances mais
pungentes de uma realidade. Me arrisco a dizer, inclusive, que o trem no
cinema, além de um espectro, constitui um grande trauma, com o qual os
cineastas precisam lidar e que até hoje encaram, reaparecendo como sintoma de
algo não inteiramente processado. O que nos leva, afinal, a analisar a que o
trem está atrelado ao longo da história do cinema, a que necessidade sua imagem
atende, ao efeito que ela produz e à herança indelével que nos é deixada.
2.
Quando os operadores de Lumière colocam
a câmera para filmar A chegada do trem na estação de Ciotat, em 1895,
(ou as inúmeras outras estações as quais eles e seus contemporâneos tão obsessivamente
registraram), mesmo que não tivessem consciência plena, criaram fantasmas junto
às suas imagens. Da muito difundida lenda de que os primeiros espectadores se
assustaram com a chegada do trem, vinda na direção da câmera; da de que este
seria o primeiro filme (sendo que a cartela inicial o indica como a produção nº
653 da Companhia Lumière, enquanto Edison também já estaria fazendo suas
exibições em outra parte do mundo); ou mesmo a narrativa da historiografia do
cinema tradicional, que coloca Lumière como inventor do cinema documental, do
registro direto da realidade material, enquanto Mèlies seria o pai da ficção,
um artista que construiu sonhos em estúdio. Lendas, inclusive, já há muito
desbancadas. No entanto, não nos cabe analisa-las apenas pelos seus fatos, pois
podemos também tomá-las como o mito que são, para entender o efeito que provocaram
na produção de imagens, em especial a assertiva inicial.
Em primeiro lugar (e em segundo,
terceiro, etc), trata-se de uma chegada. Curioso, inclusive, o fato de que esse
filme, em especial, opta por não mostrar a saída do trem, mas apenas sua
anunciação e o momento em que ele aparece para o embarque. E não é apenas a
chegada de uma nova invenção, uma jornada maravilhosa em que se poderia
embarcar, a chegada de um século das imagens como foi o XX, mas o registro
material da chegada de um trem em uma estação na França. Matéria-aço
transportando a modernidade: homens e mulheres ocupados, burgueses, à espera de
um novo meio que os leve para outro lugar. Esse é o primeiro plano da matéria
que existe viva nesse novo meio artístico, aquele, segundo Bazin, capaz de
inscrever a passagem do tempo na sucessão de imagens fotográfica, resolvendo a
velha questão da busca pela recriação da vida através das imagens, que assolava
a humanidade desde que o primeiro homem aprendeu a simbolizar seu entorno,
entendendo que isto pode ser aquilo. Este é mito de origem, o pecado
original do cinema. Sua grande conquista e maior assombração.
Até
a ausência do som, que segundo Bazin se tornaria uma aquisição natural do
cinema enquanto representação da realidade, se explica pelo barulho da própria
película funcionando no Cinematográfo dos irmãos; assim como o trem, uma
engrenagem autômata que coloca algo em movimento – som de máquina, som de ferro,
de trem e de cinema.
Mas
a última coisa que se pode esquecer ao falar de um filme dos Lumière é a
maneira como a matéria-mundo, com tanto interesse captada, se transmuta em
matéria-filme pelo olhar dos cineastas. A luz, de que tanto falamos, não é
apenas o que é registrado, mas também o que esculpe a forma na película, o que
inscreve essa representação de maneira fotoquímica, tornando o filme emanação
de seu referente, para citar Barthes. O que vemos, em luz, sombra e escala de
cinza, é a imagem de uma morte, um momento roubado. Pessoas (mortas) embarcando
em um trem (que não mais existe) em uma dada época (finita). No entanto,
diferente do que estuda Barthes na fotografia, esse momento aqui não é o
registro de um único instante, mas uma sucessão de instantes, uma recriação da
vida em movimento por uma matéria táctil que, hoje em dia, inclusive, vemos de
forma deteriorada. O que uma vez foi essa vida, essa história, essa época, hoje
em dia é luz e imagem: uma abstração cada vez maior, coordenadas que não
poderão ser apreendidas em sua totalidade, mas que podem existir enquanto
rastro desfigurado, disforme, mas animado (anima). E esta, sim, é a maior,
quiçá única, realidade que o filme retrata.
Para além de “o que o filme
retrata”, podemos falar, então, em como ele o faz. A questão da
composição, assim como tantas outras, é elucidada no filme Louis Lumière (1966),
de Éric Rohmer. Trata-se, antes de tudo, de um encontro entre gigantes: uma
conversa entre Rohmer, Henri Langlois e Jean Renoir. Um filme sobre legados e
filiações: Rohmer, herdeiro direto da teoria de Bazin, obcecado pela questão do
realismo; Langlois, aquele que foi diretamente responsável pela preservação dos
filmes de Lumière (ou seja, se Lumière é o pai do cinema, que seja Langlois seu
padrinho); e, por fim, Renoir, herdeiro tanto do primeiro impressionista
(Pierre-Auguste, seu pai), quanto do último (Lumière, com quem divide a paixão
pelo movimento do mundo).
Em
dado momento, Langlois inclusive compara a arte dos Lumière àquela dos
impressionistas, como Pierre-Auguste Renoir e Manet. O impressionismo, que nas
artes procurava condensar vários momentos em um, encapsulando o movimento do
mundo, a vibração da matéria e do espírito na tela, para Langlois desemboca na
própria criação do cinema (não à toa, surge a comparação entre A Chegada do
Trem na Estação, dos Lumière, e o quadro de Monet, Estação de
Saint-Lazar).
Para
Langlois, Lumière não registra apenas a história, mas também registra a vida a
partir de seu olhar, sabe sempre posicionar a câmera de modo a capturar um
determinado pensamento de uma época, a filosofia que a nutre, a sua arte, seus
hábitos e estilos de vida. O que seria a composição dita em “diagonal”, como na
art nouveau, que serviria para criar uma sensação de movimento e atiçar
os olhos do novo espectador da cidade, sempre com pressa, Langlois afirma, no
caso dos Lumière, ser uma composição triangular. E isso é particularmente
importante para entender uma noção intrínseca aos aparelhos técnicos, como o
cinema e a fotografia, pois o trem chegando na estação não apenas corta a tela
em sua diagonal, mas também se aproxima da câmera e evidencia sua chegada
esculpida pela luz, trazendo consigo a questão da profundidade de campo, que
tanto será estudada por cineastas, como o próprio Renoir.
Apesar,
portanto, de todo o estigma da narrativa tradicional que coloca o primeiro
cinema como primitivo, carente de linguagem, já em seu estágio inicial
observamos não apenas composição (mise en scène, se quiser),
profundidade de campo e a montagem interna que esta possibilita (com elementos
que vêm do segundo para primeiro plano e vice-versa, em uma duração de poucos
segundos), mas também os fundamentos da matéria fílmica aos quais, após um
tempo em separação, o cinema em dado momento percebe a necessidade de retorno –
e isto ocorrerá não apenas em Renoir e Rohmer, como também em Brakhage, Snow, Hellman,
Godard, Garrel, Pialat, Tscherkassky e tantos outros que não seriam facilmente
listáveis aqui.
3.
Partindo da teoria historiográfica de
Aby Warburg, para o qual a história da arte não se encadeia como uma relação
sucessiva, temporal, de causa e efeito, podemos traçar territórios para
compreender essa reaparição, essa imagem que não cessa de existir. Obviamente,
há muito mais em Lumière que a figura do trem, mas esta não deixa de ser um
emblema, um signo a partir do qual podemos entender as reverberações legadas
por este primeiro cinema, a partir de sua insistente reaparição.
Para Warburg, podemos encarar a
história das criações humanas como uma relação circular, antropológica e
cosmológica, de formas expressivas que aparecem e reaparecem ao longo da
história humana, acionadas pela força com que estruturam a natureza. Deste
modo, ele substitui o modelo ideal estabelecido no Renascimento, por historiadores
como Vasari, que tomam cada movimento artístico como uma resposta direta aos
desafios de seu tempo e às influências técnico-culturais de cada período; criando
assim um modelo fantasmal, de acordo com Didi-Huberman, que se expressa
pela relação obsessiva que os artistas estabelecem com o que produzem e com o
que já foi realizado de similar, mesmo que perdido pelo tempo e espaço. Deste
modo, o próprio Renascimento Italiano do século XV pode ter tanta relação com esculturas
da Antiguidade Clássica, quanto com artistas xamânicos da Polinésia, com a
arquitetura europeia da Idade Média ou com desenhos chineses pós-confucianos.
Esse movimento (afinal, a arte nunca
está parada) é estruturado por Warburg de acordo com alguns mecanismos: o pathosforml
(“a fórmula do páthos”), como aquilo que afeta, modelos de
expressividade que criam engramas, cristalizações materiais na memória que irão
reaparecer por meio do nachleben (“após-viver”), a antropologia do tempo,
a reaparição fantasmal de uma imagem. Como forma de acionar essa herança, de
investigar as reaparições desses engramas, Warburg cria o chamado “Atlas Mnemosyne”,
uma pesquisa de imagens realizada em pranchas temáticas, que pretende, a partir
de um arsenal de imagens, investigar os modelos e valores expressivos
cristalizados pela representação da vida em movimento.
Segundo
ele, ainda,
“É na região da
comoção orgiástica de massas que se deve buscar o mecanismo formador, que
martelou na memória as formas expressivas do estado de máxima comoção interior
(tanto quanto esta se deixa expressar na linguagem gestual) com tal intensidade
que esse engrama da experiência passional sobreviveu como herança armazenada na
memória, determinando, na condição de modelo, o contorno do que a mão do
artista cria, tão logo os valores máximos da linguagem gestual pretendam, pela
mão do artista, trazer a figuração à luz do dia” (WARBURG).
Se essa figuração surge a partir da
comoção do humano enquanto coletivo e se ela se expressa primordialmente pela
repetição gestual, pela arte da representação figurativa, no caso do cinema
existe uma contradição não resolvida. A saber: como essa estrutura se repete no
cinema de maneira tão similar, se não estamos falando de um meio direto de
figuração, mas sim de uma imagem técnica, produzida por intermédio de aparelhos?
Trata-se, na verdade, do velho problema baziniano do realismo no cinema, como
discutido antes, ao mesmo tempo sua ontologia e maior impossibilidade. Como
falar de uma imagem sobrevivente, de uma cristalização das formas na memória
humana, se a imagem não mais é produzida pelo homem, mas sim pela máquina?
Proponho, portanto, um exercício de repensar
o nachleben e o pathosforml no cinema a partir daquilo que
obsessiona não apenas o cineasta (aquele que opera a máquina), e nem apenas a
máquina (aquela que registra outras máquinas), mas o que atrái o Cine-Olho
de Dziga Vertov, a fusão do olhar político do homem com a operação maquínica do
aparelho. Não à toa, Alexander Medvedkine, contemporâneo de Vertov na União
Soviética, criou um projeto conhecido como Cine-Trem, que consistia locomotivas
nas quais os operários poderiam frequentar, em que haviam três vagões: um
refeitório no primeiro, um proto-cinema no segundo, e um laboratório de
revelação no terceiro. Para Medvedkine, além de intervir diretamente na
realidade, encarando o cinema como ferramenta para construção social de um novo
mundo, o trem se converte ao mesmo tempo em tema e suporte, objeto e sujeito
dos novos filmes que ali surgiam. Torna-se evidente, como se já não estivesse
clara, a atração quase natural, a obsessão irrefreável que o cineasta e sua
câmera possuem pelos trens. Homem-máquina.
4.
Ao longo da história do cinema, podemos pensar na imagem do trem por meio de dois eixos, não dicotômicos: a passagem (a jornada, o movimento) e a morte (a parada). Por vezes, como na cena acima, de Me chame pelo seu nome (2017, Luca Guadagnino), as duas ideias são simultaneamente demonstradas: a cena é tanto a separação entre dois amantes, a morte de um relacionamento idílico e a morte do cinema (pois trata-se de uma partida e não de uma chegada) mas também a passagem para outro mundo, o retorno à realidade comum, o regresso de um além-vida – ao mesmo passo um sonho em que é posto seu ponto-final, e uma ressureição, que vem acompanhada de profundo aprendizado.
Mas é interessante notar como certos
padrões temáticos se repetem. A exemplo da passagem, a quem podemos
tomar Lumière como precursor, há uma longa linhagem que coloca o trem como
mensageiro entre dois mundos, como ponte entre o velho e o novo. Em filmes de
fantasia como Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001, Chris Columbus) e A
Viagem de Chihiro (2003, Hayao Miasake), ele é o que carrega seus
personagens a um mundo desconhecido, um mundo da magia, como um transporte de
espíritos. Em 2046 (2004, Wong Kar-wai), o trem é a ponte que leva passageiros
a uma viagem sem volta, aos mistérios de um quarto onde o páthos não
existe e a estabilidade impera, o meio digital que satura a natureza do filme a
seu limite. Ou uma excursão pelo mundo das puras formas, como no curta New York
Subway (1905, Billy Bitzer), em que o movimento do trem transforma as
linhas do metrô em um jogo experimental de linhas de aço. Em A General
(1926, Buster Keaton e Clyde Bruckman), é a locomotiva insaciável do herói, que
atravessa um país em guerra para salvar um possível amor. Similar simbologia o
trem possui no terreno do romance, como em Antes do amanhecer (1995,
Richard Linklater), em que o trem é o solo mágico, um velho meio sagrado que
possibilita o encontro fugaz de duas almas, um segredo partilhado.
Por outro lado, em Desencanto
(1945, David Lean), sua chegada simboliza o fim da utopia de um encontro, uma
passagem entrecortada: mensageiro da morte. O transporte que vem cobrar o
retorno do paraíso e do mundo do amor para a vida comum, que anuncia sua
chegada com um estrondo. Em O grande roubo do trem (1903, Edwin S.
Porter), A besta humana (1938, Jean Renoir), Pacto Sinistro
(1951, Alfred Hitchcock) e Assalto ao trem pagador (1962, Roberto Farias),
ele é palco do crime organizado, da perversidade, da ganância do metal. Em Stand
by Me (1986, Rob Reiner) e Paranoid Park (2007, Gus Van Sant), é o
primeiro contato com a morte, a perda da inocência, o adeus à infância.
Se a figura do trem é um trauma que
se repete, dotado dos mais diversos significados e contextos, voltemos o olhar
a dois cineastas contemporâneos que ousaram, por seus caminho, encarar frontalmente
essa herança e leva-la a um ponto limite, cada qual em seu extremo. Seus nomes:
James Benning e Peter Tscherkassky, talvez dois dos maiores expoentes do cinema
experimental hoje no mundo, ambos com longas carreiras e com um interesse
evidente pelos mitos de origem do meio.
5.
O primeiro fato importante de que
devemos tratar, para além das escolhas de enquadramento que evidenciam uma
clara reaparição do tal modelo “triangular” de Lumière, é o seguinte: não
existem pessoas em RR. Salvo em um plano, após quase 2/3 do filme de duas
horas, em que vemos um homem parado do lado de fora do trem, o mundo de Benning
é vazio, pós-humano e pós-capitalista. Nele, vemos somente a convivência entre máquinas
de proporções titânicas e uma natureza que parece ter sido devastada para acomodar
esse colossos de rodas. O trem aqui não transporta mais pessoas, não é mais a
novidade que pode levar um indivíduo para outro lugar desconhecido, mas sim mercadorias,
produtos de consumo. Ele parte do nada e chega em lugar nenhum, segue sua
trajetória sem consciência de seu destino, cumprindo orgulhosamente seu
trabalho de continuar andando.
Mas
esse andar, também diferente dos Lumière, não acontece em um intervalo de
segundos: é vagaroso e sem fim. Em todos os planos, vemos a chegada do trem (de
longe), seu movimento, que continua por minutos (devido à extensão quilométrica
das locomotivas) e por fim, sua extenuante saída. O trem aqui não é mais
símbolo do movimento mas, sim, da obsolescência e do atraso, do consumo e do
acúmulo de mercadoria. Um ancião, uma peça de museu que não cansa de realizar
seu trabalho, mesmo que não saiba qual é. Em resumo: um zumbi. Um morto-vivo
que se arrasta em sua sobrevida, sua nachleben abortada pela cultura. Curioso,
inclusive, o fato de que uma figura venerada tanto pelos cineastas do novo
mundo capitalista quanto do socialista, como um símbolo daquilo que levaria a
humanidade à sua superação, hoje é encarada pelo que lhe sobrou, seus sonhos
inscritos em ferro enferrujado.
Grande
crítico do sistema político-econômico americano, Benning desloca seu interesse
no trem como uma novidade que comprime o espaço-tempo, para encará-lo como um
corpo velho, símbolo-mor que serve a um sistema em colapso. Seus movimentos são
sempre previstos, portanto, se falamos do mito da plateia que se assustou com a
exibição do filme, aqui o comentário de Benning mostra o trem como tão previsível,
tão desgastado quanto o capitalismo ou o próprio cinema, senhor centenário que
a esse serve. O filme também se arrasta, também testa a paciência do espectador
e também não está interessado em construir seu próprio sentido, pois ele já o é
naturalmente, pelo simples fato de existir.
Dentro
do terreno do documentário, do qual pode-se argumentar que o filme faz parte,
podemos até encará-lo como o contracampo do subgênero travelogue, os
filmes de viagem em primeira pessoa, na medida em que a câmera de Benning
substitui o olhar do sujeito pela janela do trem, que observa uma paisagem de
seu ponto de vista, para o olhar da própria paisagem (altiva, estática, sobrevivente)
sobre a criação do homem.
6.
Se em Lumière, o trem é sinônimo de
movimento e em Benning o é do atraso, da estagnação, em Train again (2021,
Peter Tscherkassky), ele é signo da entropia. Enquanto Benning constrói o filme
em ambientes externos, Tscherkassky trabalha apenas em sua sala escura, a
partir de fragmentos de outros filmes e imagens de arquivos. O cineasta
austríaco, que não por acaso é formado em filosofia, é um dos grandes nomes do
cinema no que diz respeito ao trabalho com a materialidade da película.
Ele possui uma fascinação quase obsessiva com o analógico, com a vida táctil do
filme que irá invadir seu fluxo interno. Os filmes do diretor consistem todos
em colagens, em manipulações artesanais do conteúdo interno e externo do fotograma,
que o levam a pairar sobre a narrativa visual, como um espírito que busca seu hospedeiro
– tal qual em sua obra-prima Outer Space, de 1999. Atormentado por essa
procura, a vida interna da película procura uma escapatória, mas não consegue
atravessar as paredes de sua janela, se convertendo no predador da própria
forma, levada à exasperação.
Train again é, segundo o
cineasta, tanto uma homenagem ao colega Kurt Kren, cineasta estrutural falecido
em 1998, quanto uma tentativa de retorno à obsessão de que falamos neste
espaço. Assim como RR, é também composto por várias imagens de trens,
mas também inclui outros meios de transporte, inclusive charretes, cavalos, e
uma aparição do triciclo de Danny, viajando pelo hotel Overlook de O
Iluminado (1980, Stanley Kubrick). Como era de se esperar em um filme de
Tscherkassky, o que começa como uma simples imagem de arquivo de um trem deixando
um túnel e a imagem invertida de uma exibição de cinema em sala escura (com
espectadores que observam a tela como se estivessem enfeitiçados) se agrupa com
fragmentos de várias outras origens e, rapidamente, passa a colidir com essas
imagens, através de técnicas como sobreposições e justaposições que duram uma
fração de segundo. É interessante notar como muitas dessas técnicas remontam
até a brinquedos ópticos pré-cinematográficos, como o folioscópio e o traumatopo,
pelos quais a troca rápida e sucessiva entre duas imagens gera uma ilusão de que
ambas estão juntas simultaneamente, enquanto, na prática, nunca vemos as duas
ao mesmo tempo.
É comum observarmos nos filmes de Tscherkassky
imagens das próprias perfurações da película, ou ela passando pela tela, pois o
cineasta não esconde que o cinema é ao mesmo tempo sua matéria e objeto
primordial. No entanto, no caso deste filme, é interessante notar como o
movimento da película dentro do quadro muitas vezes não apenas acompanha, mas
também se funde com o movimento dos trens na imagem. Tscherkassky transforma a
janela da película na janela de um trem, pela qual olhamos diretamente a um
espaço cênico em movimento diegético e extra-diegético, tornando os dois
absolutamente indissociáveis. Quando opta por mostrar uma série de
descarrilhamentos, a montagem torna-se totalmente instável, como se o filme
também tivesse saído dos eixos, se autodestruído. Em dado momento, vemos a banda
sonora da película, sobreposta por imagens de trilhos, justamente aquilo que
não temos acesso enquanto estamos a bordo de um trem, e aquilo que não vemos na
sala de cinema, e dois engramas-irmãos que dividem suas linhas.
A
palavra-chave para entender seus filmes, em certo sentido, é a esquizofrenia: a
película não sabe mais a que universo pertence, e em meio a sua crise de
identidade, transforma seu movimento em um surto psicótico. Esse movimento se
torna, então, massa abstrata, colidindo forma e conteúdo como uma maneira de
enfrentar a herança maldita que lhe foi deixada. Falar que o cineasta coloca
imagens em choque é um eufemismo: ele as coloca em guerra. Não adianta forçar a
própria parada, Tscherkassky quer mesmo é levar o velocímetro ao limite e
deixar o trem assumir a matéria viva do filme. Se o mito inicial do cinema era
o de um trem saindo da tela e indo em direção ao espectador, o filme de
Tscherkassky é a representação mais obsessiva desse pesadelo, fazendo o trem saltar
do plano do filme para invadir o extra-campo da matéria e se implodir junto à película,
em frente aos nossos olhos.
7.
Quando o cinema começa com uma chegada,
o que acontece quando estamos frente a frente com uma partida? Ou uma parada
que não dá sinais de volta?
A
despeito de suas diferenças, tanto RR quanto Train Again terminam
com uma nota amarga. Enquanto o filme de Benning, em seu último plano, mostra
um trem em movimento que para na metade, como se tivesse desgastado toda sua
energia para continuar, o de Tscherkaskky finaliza com uma partida, o trem
sumindo dentro de um túnel, partindo para um terreno incerto, talvez até
abandonando as imagens que confrontou no caminho.
Qual, afinal, é o futuro do cinema? Obviamente que não pretendo chegar a uma resposta aqui, apenas salientar as provocações feitas por alguns cineastas, apenas riscando a superfície de um longo debate, tão desgastado quando os trilhos de um velho trem. Afinal, falando em Lumière, Benning e Tscherkassky, estamos ainda dentro do terreno do analógico, sem considerar a discussão em torno do digital que certamente renderia outro artigo. Mas me parece que, mesmo 125 anos depois, os fantasmas da criação não deixam de assombrar cineastas cada vez que se vai ligar uma câmera ou pensar sobre uma imagem em movimento. Como falei acima, o nachleben (imagem sobrevivente) existe porque a história da arte está sempre em movimento, voltando quando menos se espera. E enquanto existir o movimento, se existirem imagens-movimento, não estaremos livres dessa assombração. O que, certamente, não deixa de ser revelador quando pensamos sobre a atualidade da luz e dos Lumière.
os dois irmãos não foram bem
compreendidos
eles falaram
sem futuro
querendo dizer
uma arte do presente
uma arte que dá
mas que recebe antes de dar
digamos assim
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