Lumière, Benning, Tscherkassky: trens, trens, trens

por Luca Scupino

1.        


        No princípio era a luz. Louis Lumière = duas vezes luz, como diria o cineasta Jairo Ferreira. Se essa luz era tanto a matéria-prima quanto o resultado material das imagens que ali tomavam proporção, o que era por ela iluminado e enquadrado também pertencia a um universo específico de signos: festas, tradições, acontecimentos públicos, esquetes cômicas, máquinas, imagens do novo mundo em movimento. Mas de todas estas, uma imagem permanece a mais marcante, a mais afetiva: o espectro do trem. E nada faria mais sentido que começar esse espaço com uma anunciação, uma chegada.

            A relação entre trens e cinema não é nova (talvez, aliás, seja a mais antiga de todas), tampouco é a teoria de que o cinema corresponde no campo estético à mesma necessidade de compressão espaço-temporal que o surgimento do trem promove no transporte, fundando uma nova experiência urbana, que tanto foi base para a poesia e as artes plásticas no século XIX. Não interessa, portanto, analisar o contexto histórico que possibilitou as similaridades entre os dois meios – afinal, é isso que são, duas mídias, dois transmissores de informação – como meros correlatos da vida na modernidade, pois isso já está na base, na ontologia e na fisiologia desses meios. A sequência de fotogramas e os vagões em série; as perfurações da película e as rodas e trilhos; a faixa contínua, o movimento enquanto se está parado e estaticidade quando se está em movimento, a janela pela qual observamos uma realidade: se formos realizar uma arqueologia das mídias, como propõe Elsaesser, veremos que o cinema deve sua origem tanto às ferrovias quanto à fotografia, ao teatro e à pintura, e que isto está codificado na própria engrenagem na qual ele nasce.

            Mas, se escreve Elsaesser, partindo de Tom Gunning, que além de uma “estética do assombro”, devemos buscar uma “hermenêutica do assombro”, não há imagem mais assombrosa no cinema que a do trem, em todos os sentidos. Assombro, no dicionário: “grande espanto ou admiração” – o espanto, tal como diz Ferreira Gullar, que permite a criação ao nos mover, nos tirar de um lugar comum e fazer perceber as nuances mais pungentes de uma realidade. Me arrisco a dizer, inclusive, que o trem no cinema, além de um espectro, constitui um grande trauma, com o qual os cineastas precisam lidar e que até hoje encaram, reaparecendo como sintoma de algo não inteiramente processado. O que nos leva, afinal, a analisar a que o trem está atrelado ao longo da história do cinema, a que necessidade sua imagem atende, ao efeito que ela produz e à herança indelével que nos é deixada.

 

2.         


           Quando os operadores de Lumière colocam a câmera para filmar A chegada do trem na estação de Ciotat, em 1895, (ou as inúmeras outras estações as quais eles e seus contemporâneos tão obsessivamente registraram), mesmo que não tivessem consciência plena, criaram fantasmas junto às suas imagens. Da muito difundida lenda de que os primeiros espectadores se assustaram com a chegada do trem, vinda na direção da câmera; da de que este seria o primeiro filme (sendo que a cartela inicial o indica como a produção nº 653 da Companhia Lumière, enquanto Edison também já estaria fazendo suas exibições em outra parte do mundo); ou mesmo a narrativa da historiografia do cinema tradicional, que coloca Lumière como inventor do cinema documental, do registro direto da realidade material, enquanto Mèlies seria o pai da ficção, um artista que construiu sonhos em estúdio. Lendas, inclusive, já há muito desbancadas. No entanto, não nos cabe analisa-las apenas pelos seus fatos, pois podemos também tomá-las como o mito que são, para entender o efeito que provocaram na produção de imagens, em especial a assertiva inicial.

            Em primeiro lugar (e em segundo, terceiro, etc), trata-se de uma chegada. Curioso, inclusive, o fato de que esse filme, em especial, opta por não mostrar a saída do trem, mas apenas sua anunciação e o momento em que ele aparece para o embarque. E não é apenas a chegada de uma nova invenção, uma jornada maravilhosa em que se poderia embarcar, a chegada de um século das imagens como foi o XX, mas o registro material da chegada de um trem em uma estação na França. Matéria-aço transportando a modernidade: homens e mulheres ocupados, burgueses, à espera de um novo meio que os leve para outro lugar. Esse é o primeiro plano da matéria que existe viva nesse novo meio artístico, aquele, segundo Bazin, capaz de inscrever a passagem do tempo na sucessão de imagens fotográfica, resolvendo a velha questão da busca pela recriação da vida através das imagens, que assolava a humanidade desde que o primeiro homem aprendeu a simbolizar seu entorno, entendendo que isto pode ser aquilo. Este é mito de origem, o pecado original do cinema. Sua grande conquista e maior assombração.

Até a ausência do som, que segundo Bazin se tornaria uma aquisição natural do cinema enquanto representação da realidade, se explica pelo barulho da própria película funcionando no Cinematográfo dos irmãos; assim como o trem, uma engrenagem autômata que coloca algo em movimento – som de máquina, som de ferro, de trem e de cinema.

Mas a última coisa que se pode esquecer ao falar de um filme dos Lumière é a maneira como a matéria-mundo, com tanto interesse captada, se transmuta em matéria-filme pelo olhar dos cineastas. A luz, de que tanto falamos, não é apenas o que é registrado, mas também o que esculpe a forma na película, o que inscreve essa representação de maneira fotoquímica, tornando o filme emanação de seu referente, para citar Barthes. O que vemos, em luz, sombra e escala de cinza, é a imagem de uma morte, um momento roubado. Pessoas (mortas) embarcando em um trem (que não mais existe) em uma dada época (finita). No entanto, diferente do que estuda Barthes na fotografia, esse momento aqui não é o registro de um único instante, mas uma sucessão de instantes, uma recriação da vida em movimento por uma matéria táctil que, hoje em dia, inclusive, vemos de forma deteriorada. O que uma vez foi essa vida, essa história, essa época, hoje em dia é luz e imagem: uma abstração cada vez maior, coordenadas que não poderão ser apreendidas em sua totalidade, mas que podem existir enquanto rastro desfigurado, disforme, mas animado (anima). E esta, sim, é a maior, quiçá única, realidade que o filme retrata.

            Para além de “o que o filme retrata”, podemos falar, então, em como ele o faz. A questão da composição, assim como tantas outras, é elucidada no filme Louis Lumière (1966), de Éric Rohmer. Trata-se, antes de tudo, de um encontro entre gigantes: uma conversa entre Rohmer, Henri Langlois e Jean Renoir. Um filme sobre legados e filiações: Rohmer, herdeiro direto da teoria de Bazin, obcecado pela questão do realismo; Langlois, aquele que foi diretamente responsável pela preservação dos filmes de Lumière (ou seja, se Lumière é o pai do cinema, que seja Langlois seu padrinho); e, por fim, Renoir, herdeiro tanto do primeiro impressionista (Pierre-Auguste, seu pai), quanto do último (Lumière, com quem divide a paixão pelo movimento do mundo).

Em dado momento, Langlois inclusive compara a arte dos Lumière àquela dos impressionistas, como Pierre-Auguste Renoir e Manet. O impressionismo, que nas artes procurava condensar vários momentos em um, encapsulando o movimento do mundo, a vibração da matéria e do espírito na tela, para Langlois desemboca na própria criação do cinema (não à toa, surge a comparação entre A Chegada do Trem na Estação, dos Lumière, e o quadro de Monet, Estação de Saint-Lazar).

Para Langlois, Lumière não registra apenas a história, mas também registra a vida a partir de seu olhar, sabe sempre posicionar a câmera de modo a capturar um determinado pensamento de uma época, a filosofia que a nutre, a sua arte, seus hábitos e estilos de vida. O que seria a composição dita em “diagonal”, como na art nouveau, que serviria para criar uma sensação de movimento e atiçar os olhos do novo espectador da cidade, sempre com pressa, Langlois afirma, no caso dos Lumière, ser uma composição triangular. E isso é particularmente importante para entender uma noção intrínseca aos aparelhos técnicos, como o cinema e a fotografia, pois o trem chegando na estação não apenas corta a tela em sua diagonal, mas também se aproxima da câmera e evidencia sua chegada esculpida pela luz, trazendo consigo a questão da profundidade de campo, que tanto será estudada por cineastas, como o próprio Renoir.

Apesar, portanto, de todo o estigma da narrativa tradicional que coloca o primeiro cinema como primitivo, carente de linguagem, já em seu estágio inicial observamos não apenas composição (mise en scène, se quiser), profundidade de campo e a montagem interna que esta possibilita (com elementos que vêm do segundo para primeiro plano e vice-versa, em uma duração de poucos segundos), mas também os fundamentos da matéria fílmica aos quais, após um tempo em separação, o cinema em dado momento percebe a necessidade de retorno – e isto ocorrerá não apenas em Renoir e Rohmer, como também em Brakhage, Snow, Hellman, Godard, Garrel, Pialat, Tscherkassky e tantos outros que não seriam facilmente listáveis aqui.

 

3.         


             Partindo da teoria historiográfica de Aby Warburg, para o qual a história da arte não se encadeia como uma relação sucessiva, temporal, de causa e efeito, podemos traçar territórios para compreender essa reaparição, essa imagem que não cessa de existir. Obviamente, há muito mais em Lumière que a figura do trem, mas esta não deixa de ser um emblema, um signo a partir do qual podemos entender as reverberações legadas por este primeiro cinema, a partir de sua insistente reaparição.

         Para Warburg, podemos encarar a história das criações humanas como uma relação circular, antropológica e cosmológica, de formas expressivas que aparecem e reaparecem ao longo da história humana, acionadas pela força com que estruturam a natureza. Deste modo, ele substitui o modelo ideal estabelecido no Renascimento, por historiadores como Vasari, que tomam cada movimento artístico como uma resposta direta aos desafios de seu tempo e às influências técnico-culturais de cada período; criando assim um modelo fantasmal, de acordo com Didi-Huberman, que se expressa pela relação obsessiva que os artistas estabelecem com o que produzem e com o que já foi realizado de similar, mesmo que perdido pelo tempo e espaço. Deste modo, o próprio Renascimento Italiano do século XV pode ter tanta relação com esculturas da Antiguidade Clássica, quanto com artistas xamânicos da Polinésia, com a arquitetura europeia da Idade Média ou com desenhos chineses pós-confucianos.

            Esse movimento (afinal, a arte nunca está parada) é estruturado por Warburg de acordo com alguns mecanismos: o pathosforml (“a fórmula do páthos”), como aquilo que afeta, modelos de expressividade que criam engramas, cristalizações materiais na memória que irão reaparecer por meio do nachleben (“após-viver”), a antropologia do tempo, a reaparição fantasmal de uma imagem. Como forma de acionar essa herança, de investigar as reaparições desses engramas, Warburg cria o chamado “Atlas Mnemosyne”, uma pesquisa de imagens realizada em pranchas temáticas, que pretende, a partir de um arsenal de imagens, investigar os modelos e valores expressivos cristalizados pela representação da vida em movimento.

Segundo ele, ainda,

“É na região da comoção orgiástica de massas que se deve buscar o mecanismo formador, que martelou na memória as formas expressivas do estado de máxima comoção interior (tanto quanto esta se deixa expressar na linguagem gestual) com tal intensidade que esse engrama da experiência passional sobreviveu como herança armazenada na memória, determinando, na condição de modelo, o contorno do que a mão do artista cria, tão logo os valores máximos da linguagem gestual pretendam, pela mão do artista, trazer a figuração à luz do dia” (WARBURG).

            Se essa figuração surge a partir da comoção do humano enquanto coletivo e se ela se expressa primordialmente pela repetição gestual, pela arte da representação figurativa, no caso do cinema existe uma contradição não resolvida. A saber: como essa estrutura se repete no cinema de maneira tão similar, se não estamos falando de um meio direto de figuração, mas sim de uma imagem técnica, produzida por intermédio de aparelhos? Trata-se, na verdade, do velho problema baziniano do realismo no cinema, como discutido antes, ao mesmo tempo sua ontologia e maior impossibilidade. Como falar de uma imagem sobrevivente, de uma cristalização das formas na memória humana, se a imagem não mais é produzida pelo homem, mas sim pela máquina?

            Proponho, portanto, um exercício de repensar o nachleben e o pathosforml no cinema a partir daquilo que obsessiona não apenas o cineasta (aquele que opera a máquina), e nem apenas a máquina (aquela que registra outras máquinas), mas o que atrái o Cine-Olho de Dziga Vertov, a fusão do olhar político do homem com a operação maquínica do aparelho. Não à toa, Alexander Medvedkine, contemporâneo de Vertov na União Soviética, criou um projeto conhecido como Cine-Trem, que consistia locomotivas nas quais os operários poderiam frequentar, em que haviam três vagões: um refeitório no primeiro, um proto-cinema no segundo, e um laboratório de revelação no terceiro. Para Medvedkine, além de intervir diretamente na realidade, encarando o cinema como ferramenta para construção social de um novo mundo, o trem se converte ao mesmo tempo em tema e suporte, objeto e sujeito dos novos filmes que ali surgiam. Torna-se evidente, como se já não estivesse clara, a atração quase natural, a obsessão irrefreável que o cineasta e sua câmera possuem pelos trens. Homem-máquina.

 

4.        

        Ao longo da história do cinema, podemos pensar na imagem do trem por meio de dois eixos, não dicotômicos: a passagem (a jornada, o movimento) e a morte (a parada). Por vezes, como na cena acima, de Me chame pelo seu nome (2017, Luca Guadagnino), as duas ideias são simultaneamente demonstradas: a cena é tanto a separação entre dois amantes, a morte de um relacionamento idílico e a morte do cinema (pois trata-se de uma partida e não de uma chegada) mas também a passagem para outro mundo, o retorno à realidade comum, o regresso de um além-vida – ao mesmo passo um sonho em que é posto seu ponto-final, e uma ressureição, que vem acompanhada de profundo aprendizado.      

        Mas é interessante notar como certos padrões temáticos se repetem. A exemplo da passagem, a quem podemos tomar Lumière como precursor, há uma longa linhagem que coloca o trem como mensageiro entre dois mundos, como ponte entre o velho e o novo. Em filmes de fantasia como Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001, Chris Columbus) e A Viagem de Chihiro (2003, Hayao Miasake), ele é o que carrega seus personagens a um mundo desconhecido, um mundo da magia, como um transporte de espíritos. Em 2046 (2004, Wong Kar-wai), o trem é a ponte que leva passageiros a uma viagem sem volta, aos mistérios de um quarto onde o páthos não existe e a estabilidade impera, o meio digital que satura a natureza do filme a seu limite. Ou uma excursão pelo mundo das puras formas, como no curta New York Subway (1905, Billy Bitzer), em que o movimento do trem transforma as linhas do metrô em um jogo experimental de linhas de aço. Em A General (1926, Buster Keaton e Clyde Bruckman), é a locomotiva insaciável do herói, que atravessa um país em guerra para salvar um possível amor. Similar simbologia o trem possui no terreno do romance, como em Antes do amanhecer (1995, Richard Linklater), em que o trem é o solo mágico, um velho meio sagrado que possibilita o encontro fugaz de duas almas, um segredo partilhado.

            Por outro lado, em Desencanto (1945, David Lean), sua chegada simboliza o fim da utopia de um encontro, uma passagem entrecortada: mensageiro da morte. O transporte que vem cobrar o retorno do paraíso e do mundo do amor para a vida comum, que anuncia sua chegada com um estrondo. Em O grande roubo do trem (1903, Edwin S. Porter), A besta humana (1938, Jean Renoir), Pacto Sinistro (1951, Alfred Hitchcock) e Assalto ao trem pagador (1962, Roberto Farias), ele é palco do crime organizado, da perversidade, da ganância do metal. Em Stand by Me (1986, Rob Reiner) e Paranoid Park (2007, Gus Van Sant), é o primeiro contato com a morte, a perda da inocência, o adeus à infância.

            Se a figura do trem é um trauma que se repete, dotado dos mais diversos significados e contextos, voltemos o olhar a dois cineastas contemporâneos que ousaram, por seus caminho, encarar frontalmente essa herança e leva-la a um ponto limite, cada qual em seu extremo. Seus nomes: James Benning e Peter Tscherkassky, talvez dois dos maiores expoentes do cinema experimental hoje no mundo, ambos com longas carreiras e com um interesse evidente pelos mitos de origem do meio.

 

5.         


        RR (2007), de James Benning, significa literalmente “railroad” (ferrovia), e irá, também literalmente, registrar, em planos longos e estáticos, trens-cargo entrando e saindo de cena, em ambientes rurais dos Estados Unidos, país de origem do cineasta. Entusiasta do uso do 16mm, o intermédio entre profissional e caseiro, Benning não é estranho a filmes que retratam paisagens e meios aparentemente abandonados, e mantém o minimalismo como cerne de sua técnica.

            O primeiro fato importante de que devemos tratar, para além das escolhas de enquadramento que evidenciam uma clara reaparição do tal modelo “triangular” de Lumière, é o seguinte: não existem pessoas em RR. Salvo em um plano, após quase 2/3 do filme de duas horas, em que vemos um homem parado do lado de fora do trem, o mundo de Benning é vazio, pós-humano e pós-capitalista. Nele, vemos somente a convivência entre máquinas de proporções titânicas e uma natureza que parece ter sido devastada para acomodar esse colossos de rodas. O trem aqui não transporta mais pessoas, não é mais a novidade que pode levar um indivíduo para outro lugar desconhecido, mas sim mercadorias, produtos de consumo. Ele parte do nada e chega em lugar nenhum, segue sua trajetória sem consciência de seu destino, cumprindo orgulhosamente seu trabalho de continuar andando.

Mas esse andar, também diferente dos Lumière, não acontece em um intervalo de segundos: é vagaroso e sem fim. Em todos os planos, vemos a chegada do trem (de longe), seu movimento, que continua por minutos (devido à extensão quilométrica das locomotivas) e por fim, sua extenuante saída. O trem aqui não é mais símbolo do movimento mas, sim, da obsolescência e do atraso, do consumo e do acúmulo de mercadoria. Um ancião, uma peça de museu que não cansa de realizar seu trabalho, mesmo que não saiba qual é. Em resumo: um zumbi. Um morto-vivo que se arrasta em sua sobrevida, sua nachleben abortada pela cultura. Curioso, inclusive, o fato de que uma figura venerada tanto pelos cineastas do novo mundo capitalista quanto do socialista, como um símbolo daquilo que levaria a humanidade à sua superação, hoje é encarada pelo que lhe sobrou, seus sonhos inscritos em ferro enferrujado.

Grande crítico do sistema político-econômico americano, Benning desloca seu interesse no trem como uma novidade que comprime o espaço-tempo, para encará-lo como um corpo velho, símbolo-mor que serve a um sistema em colapso. Seus movimentos são sempre previstos, portanto, se falamos do mito da plateia que se assustou com a exibição do filme, aqui o comentário de Benning mostra o trem como tão previsível, tão desgastado quanto o capitalismo ou o próprio cinema, senhor centenário que a esse serve. O filme também se arrasta, também testa a paciência do espectador e também não está interessado em construir seu próprio sentido, pois ele já o é naturalmente, pelo simples fato de existir.

Dentro do terreno do documentário, do qual pode-se argumentar que o filme faz parte, podemos até encará-lo como o contracampo do subgênero travelogue, os filmes de viagem em primeira pessoa, na medida em que a câmera de Benning substitui o olhar do sujeito pela janela do trem, que observa uma paisagem de seu ponto de vista, para o olhar da própria paisagem (altiva, estática, sobrevivente) sobre a criação do homem.

 

6.        


                Se em Lumière, o trem é sinônimo de movimento e em Benning o é do atraso, da estagnação, em Train again (2021, Peter Tscherkassky), ele é signo da entropia. Enquanto Benning constrói o filme em ambientes externos, Tscherkassky trabalha apenas em sua sala escura, a partir de fragmentos de outros filmes e imagens de arquivos. O cineasta austríaco, que não por acaso é formado em filosofia, é um dos grandes nomes do cinema no que diz respeito ao trabalho com a materialidade da película. Ele possui uma fascinação quase obsessiva com o analógico, com a vida táctil do filme que irá invadir seu fluxo interno. Os filmes do diretor consistem todos em colagens, em manipulações artesanais do conteúdo interno e externo do fotograma, que o levam a pairar sobre a narrativa visual, como um espírito que busca seu hospedeiro – tal qual em sua obra-prima Outer Space, de 1999. Atormentado por essa procura, a vida interna da película procura uma escapatória, mas não consegue atravessar as paredes de sua janela, se convertendo no predador da própria forma, levada à exasperação.

            Train again é, segundo o cineasta, tanto uma homenagem ao colega Kurt Kren, cineasta estrutural falecido em 1998, quanto uma tentativa de retorno à obsessão de que falamos neste espaço. Assim como RR, é também composto por várias imagens de trens, mas também inclui outros meios de transporte, inclusive charretes, cavalos, e uma aparição do triciclo de Danny, viajando pelo hotel Overlook de O Iluminado (1980, Stanley Kubrick). Como era de se esperar em um filme de Tscherkassky, o que começa como uma simples imagem de arquivo de um trem deixando um túnel e a imagem invertida de uma exibição de cinema em sala escura (com espectadores que observam a tela como se estivessem enfeitiçados) se agrupa com fragmentos de várias outras origens e, rapidamente, passa a colidir com essas imagens, através de técnicas como sobreposições e justaposições que duram uma fração de segundo. É interessante notar como muitas dessas técnicas remontam até a brinquedos ópticos pré-cinematográficos, como o folioscópio e o traumatopo, pelos quais a troca rápida e sucessiva entre duas imagens gera uma ilusão de que ambas estão juntas simultaneamente, enquanto, na prática, nunca vemos as duas ao mesmo tempo.

            É comum observarmos nos filmes de Tscherkassky imagens das próprias perfurações da película, ou ela passando pela tela, pois o cineasta não esconde que o cinema é ao mesmo tempo sua matéria e objeto primordial. No entanto, no caso deste filme, é interessante notar como o movimento da película dentro do quadro muitas vezes não apenas acompanha, mas também se funde com o movimento dos trens na imagem. Tscherkassky transforma a janela da película na janela de um trem, pela qual olhamos diretamente a um espaço cênico em movimento diegético e extra-diegético, tornando os dois absolutamente indissociáveis. Quando opta por mostrar uma série de descarrilhamentos, a montagem torna-se totalmente instável, como se o filme também tivesse saído dos eixos, se autodestruído. Em dado momento, vemos a banda sonora da película, sobreposta por imagens de trilhos, justamente aquilo que não temos acesso enquanto estamos a bordo de um trem, e aquilo que não vemos na sala de cinema, e dois engramas-irmãos que dividem suas linhas.

A palavra-chave para entender seus filmes, em certo sentido, é a esquizofrenia: a película não sabe mais a que universo pertence, e em meio a sua crise de identidade, transforma seu movimento em um surto psicótico. Esse movimento se torna, então, massa abstrata, colidindo forma e conteúdo como uma maneira de enfrentar a herança maldita que lhe foi deixada. Falar que o cineasta coloca imagens em choque é um eufemismo: ele as coloca em guerra. Não adianta forçar a própria parada, Tscherkassky quer mesmo é levar o velocímetro ao limite e deixar o trem assumir a matéria viva do filme. Se o mito inicial do cinema era o de um trem saindo da tela e indo em direção ao espectador, o filme de Tscherkassky é a representação mais obsessiva desse pesadelo, fazendo o trem saltar do plano do filme para invadir o extra-campo da matéria e se implodir junto à película, em frente aos nossos olhos.

 

7.         



        Quando o cinema começa com uma chegada, o que acontece quando estamos frente a frente com uma partida? Ou uma parada que não dá sinais de volta?

A despeito de suas diferenças, tanto RR quanto Train Again terminam com uma nota amarga. Enquanto o filme de Benning, em seu último plano, mostra um trem em movimento que para na metade, como se tivesse desgastado toda sua energia para continuar, o de Tscherkaskky finaliza com uma partida, o trem sumindo dentro de um túnel, partindo para um terreno incerto, talvez até abandonando as imagens que confrontou no caminho.

Qual, afinal, é o futuro do cinema? Obviamente que não pretendo chegar a uma resposta aqui, apenas salientar as provocações feitas por alguns cineastas, apenas riscando a superfície de um longo debate, tão desgastado quando os trilhos de um velho trem. Afinal, falando em Lumière, Benning e Tscherkassky, estamos ainda dentro do terreno do analógico, sem considerar a discussão em torno do digital que certamente renderia outro artigo. Mas me parece que, mesmo 125 anos depois, os fantasmas da criação não deixam de assombrar cineastas cada vez que se vai ligar uma câmera ou pensar sobre uma imagem em movimento. Como falei acima, o nachleben (imagem sobrevivente) existe porque a história da arte está sempre em movimento, voltando quando menos se espera. E enquanto existir o movimento, se existirem imagens-movimento, não estaremos livres dessa assombração. O que, certamente, não deixa de ser revelador quando pensamos sobre a atualidade da luz e dos Lumière.


8.

“só que depois
os dois irmãos não foram bem 
compreendidos
eles falaram
sem futuro
querendo dizer

uma arte do presente
uma arte que dá
mas que recebe antes de dar
digamos assim
a infância da arte” 
(JLG, p. 36)


Referências bibliográficas:

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BAZIN, André. O que é cinema? São Paulo: Ubu, 2018.

COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro Cinema. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2012.

CINEMOVIMENTO. O Cine-Trem, Cine-Olho e a Revolução Russa. Acesso em: <https://cinemovimento.wordpress.com/2017/07/17/14-o-cine-trem-o-cine-olho-e-a-revolucao-russa/>

DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen superviviente. Espanha: Abada Editores, 2009.

ELSAESSER, Thomas. Cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: SESC, 2018.

GIO, Giordano. O trem como espectro da modernidade no cinema de Georges Meliès. Revista Hacer. Acesso em: <https://www.hacer.com.br/trem-modernidade>

GODARD, Jean-Luc. História(s) do Cinema. São Paulo: Círculo de Poemas, 2022.

NOGUEIRA, Calac. Warhol, Bressane, Garrel: Materialismo e Presentificação. Revista Foco. Acesso em: <http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/calacmaterialismo.htm>

SAMAIN, Etiènne (org). Como pensam as imagens. Campinas: Unicamp, 2012.

WARBURG, Aby. Introdução à Mnemosyne. In: Histórias de fantasma para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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